Descida ao Sul


Este Jonas cabo-verdiano representa uma grande parte da comunidade cabo-verdiana que foi trabalhar para as roças de S. Tomé e Príncipe e não voltou.

Por diversas razões (seca, fome, algum outro castigo?) foram obrigados a deixar a sua terra natal e por lá ficaram.

Segundo o contrato, que a maioria tinha, era suposto serem trazidos de volta após findar o mesmo, mas assim não aconteceu com essa grande maioria.

A actual situação em que vivem os meus conterrâneos não é a mais digna. São marginalizados pela própria população local. São o elo mais fraco da heterogénea sociedade são-tomense. São ainda vistos como "gente de roça", trabalhadores do mato, contratados. São os mais desprotegidos daquele desprotegido país.

Mas são também desprotegidos pelo seu próprio país - Cabo Verde.

Há poucos anos, numa reunião entre o então presidente das comunidades cabo-verdianas e os tais contratados cabo-verdianos de S. Tomé e seus descendentes, pude ver que Cabo Verde não está preparado para os receber e parece não os querer receber!

Foi-lhes sugerido, por um dos elementos da comitiva, que adquirissem a nacionalidade são-tomense! Isto caiu mal aos meus irmãos cabo-verdianos. Caiu mesmo mal.

Depois de verem que as suas "reivindicações" caíam em saco roto, que as respostas que aguardavam há tanto tempo não lhes mudava a situação, esta coisa de adquirirem nacionalidade são-tomense foi encarada quase como um insulto.

Alguns diziam ali que nasceram e morrerão cabo-verdianos!

Cabo-verdianos, morrerão. São-tomenses, morrerão. Portugueses, morrerão.

Mas mais importante do que saber com que nacionalidade morrerão, seja talvez saber se continuarão a morrer de forma menos digna ou se alguém passa a olhar para eles de outra forma.

Se São Tomé e Príncipe, se Cabo Verde não têm condições ou vontade, era bom saber onde está Portugal nesta história e o que diz...

Sim, eles foram para essas roças contratados por Portugal e o bilhete de volta deve ter caducado quando o tempo de Portugal parou a 25 de Abril de 1974 ou perto disso.

Até quando esta situação? Quantos Jonas ainda estão nos porões à espera de serem atirados ao mar? Quantos Jonas se encontram ainda presos em barrigas de baleia? Quantos Jonas mais vão descer à terra sem voltar a Cabo Verde?

Libertem aqueles que querem sair, deixem-nos morrer com alguma dignidade nos seus ninhos!


Descida ao Sul

Jonas desce da cama,
Prepara-se para a lida.
Repensa a dura vida,
E na seca que o trama.

Jonas sai de casa,
Desce a longa rua.
Leva a barriga crua
Para assar na brasa.

Jonas falta ao serviço
E desce para o barco.
Ultrapassa o marco
Para quebrar o enguiço.

Jonas desce ao porão
Levando algum alento
De trazer sustento
Para Santo Antão.

Jonas, distante do lar,
Não sabe a hora
Em que lhe atiram fora
Para descer ao mar.

Jonas desce à barriga
De uma baleia
E naquela boleia
De tudo se intriga.

Jonas é vomitado
Em São Tomé.
Ali desceu de pé
Seu corpo cansado.

Jonas não é de guerra
E é motivo de troça.
Nunca deixou a roça
E lá desceu à terra.

Jonas fez caminho
E desceu ao sul.
Percorreu o azul,
Não subiu pr'o ninho.

Karau_Timur, 12 Fevereiro, 2008.


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